“Isabella!”, ela correu até mim, abraçando-me. “Minha nossa, como você mudou! Como está?”
“Estou ótima, Lizzy, obrigada”, examinei-a de cima a baixo por um instante. Vestia uma calça jeans desbotada com uma blusa de frio, com mangas. Um lenço estilo francês estava jogado ao pescoço. Amarrada à cintura, uma jaqueta jeans clara dava-a um ar mais rebelde. “O que houve com você?”
“Nada... você achou...” ela olhou a si mesma, meio sem graça. “... ruim?”
“Não, não!”, eu ri. “Está ótimo em você! É uma melhora.”
Ela sorriu lentamente, voltando a me abraçar.
Da última vez que eu vira Elizabeth... Lizzy, como ela gostava de ser chamada... ela era obrigada a se vestir exatamente como seus pais mandavam. Um vestido preto de mangas e gola alta; meia calça preta e sapatilhas pretas e completamente sérias; seu cabelo liso, castanho-claro, tão bonito... mas penteado de forma tão séria com uma tiara preta alinhada um pouco acima da testa. Aquelas roupas não tão certinhas certamente eram uma melhora.
“E como foi o seu verão?”, eu perguntei alguns minutos depois, ambas sentadas em um banquinho da praça em frente à escola.
Era manhã, uma manhã fria no final de agosto, o que era uma novidade. Nossas aulas começariam dali a dois dias, mas devíamos comparecer a uma reunião prévia na escola. Eu não esperava encontrar Lizzy ali – ela deveria estar na França com sua família materna, aproveitando o friozinho que fazia por lá nessa época do ano. Isso já era outra novidade, que eu duvidava não ter algo a ver com sua mudança de roupa.
“Ah, foi ótimo!”, ela riu. “Eu fugi com o David, um americano que encontrei por Paris. Foi como você disse, Bels! Eu precisava de um pouco de aventura! Precisava sair de casa um pouco e... veja! Eu estou outra pessoa, não estou?”
“É... está sim”, sorri.
Ela jogou seu cabelo para trás com uma das mãos, como se quisesse ainda outra prova da diferença entre a antiga e a nova Lizzy.
“E como é o David?”, eu perguntei, ansiosa. “Você não me mandou nenhum e-mail! Nem um cartão-postal, e você prometeu me mandar um!”
Ela riu alto, atraindo a atenção de um casal de adultos sentados em outro banco da praça, alguns metros à nossa frente.
“Ele é lindo! E, principalmente, é o tipo de garoto que faria meus pais enlouquecerem!”, ela riu novamente, e eu notei um certo brilho especial em seus olhos azuis-escuros. “E eles enlouqueceram, sabe? Graças ao David, estou finalmente livre! Meus pais me ofereceram dinheiro, mais viagens para a Europa, roupas caras de grife, mas, não, eu não aceitei! Aliás, eu sequer pensei em aceitar! Eu não posso resistir, Bella, eu acho que eu o amo... eu acho que eu amo o David.”
Eu a abracei.
“Que lindo, Lizzy... parabéns”, eu sussurrei em seu ouvido, sinceramente feliz por minha melhor amiga.
“É a sua vez”, ela disse, me afastando lentamente. “Como foi o seu verão?”
Eu sorri levemente.
“Nada demais. Fiquei em casa, naturalmente, e meus pais não vieram. Mas me mandaram um e-mail, e um cartão postal, o que nem você fez por mim.”
Ela suspirou, quase revirando os olhos, e sua expressão transformou-se em uma expressão de pena, o que não me agradou nem um pouco. Eu odiava aquela expressão – a expressão que muitos faziam ao me notar sozinha nas reuniões de pais e mestres, ou ao me ouvirem contar que meus pais não irão me visitar nos próximos feriados ou... ou algo que envolva meus pais e um “não” como resposta a alguma pergunta sobre “vir visitar sua única filha”.
“Eu sinto muito”, Lizzy disse. “O que houve dessa vez?”
“Meu pai teve que viajar... em uma reunião muito importante”, forcei um sorriso. “Mamãe não quis abandoná-lo sozinho com aquela gente, então ela foi com ele. Há mais detalhes no e-mail que eles me mandaram, mas eu não precisei ler até o final para saber que eles não viriam.”
Lizzy bufou, logo forçando um sorriso fraco, talvez com a intenção de me animar.
“Ok, eles devem ser uns idiotas”, ela disse. “Quero dizer, meus pais são super ocupados. Meu pai precisa, e mamãe deve apenas gostar de não ter tempo para respirar direito. Mas nem por isso eles me abandonam nas férias de verão. Dois meses para passar comigo, chega a ser até entediante e eu fico enjoada de ver as caras deles logo no final de julho. O mês seguinte já se torna uma tortura.”
Eu ri baixinho. Era quase uma obrigação rir com ela, já que era a única que tentava me fazer rir, àquela altura. Eu era conhecida na escola como “aquela que nunca ria” ou “aquela que nunca se divertia”, e alguns diziam que a culpa não era inteiramente minha. Diziam que meus pais não haviam me dado uma infância digna, e que, por isso, eu havia me tornado o que era agora. “Aquela que não se divertia” era uma boa definição, até em minha opinião.
“Então, o que você fez em casa?”, Lizzy voltou a perguntar.
“Basicamente nada”, balancei a cabeça. “Na verdade, o tempo passou rápido. Mesmo. Acho que os livros ocupam espaço suficiente na minha cabeça e me fazem incapaz de pensar em algo mais”.
Ela ficou boquiaberta.
“O que anda lendo?”, perguntou. “Minha avó incorporou em você ou algo assim? Essa sua última frase foi muito...”
“Sei o que quer dizer”, sorri. “Não é a primeira a me falar isso. Mas tudo bem. Eu estou absolutamente bem. É sério”.
“Ok... só tenta começar a falar como uma adolescente normal. Dezesseis anos, Bels. Se continuar assim, vai falar como o Sr. Klints assim que completar vinte anos.”
Dessa vez eu ri de verdade. O Sr. Klints, nosso professor de Ciências, era o homem mais estranho do universo. Falava como uma máquina, de forma ensaiada, como se estivesse vivo há tanto tempo que já tivesse dito mais de cem vezes a maioria das suas frases brilhantes. Não havia como explicar o jeito que ele falava... era só... assustador.
“Ok, vou tentar ‘me controlar’”, eu ri novamente.
Ela me acompanhou.
“O que você encontrou?”
“Nada muito esclarecedor”, assoprei um pouco da poeira sobre a página do livro. Algumas palavras mancharam. “Ah, droga.”
“O quê?”, sua voz era alarmante ao telefone.
“Nada... só algumas palavras... elas mancharam”.
“Você assoprou a poeira. Não assoprou?”, ele parecia decepcionado.
“Assoprei”, suspirei. “Mas não importa. Peter, eu não encontro nada. Vamos desistir”.
“Não”, determinação. “Você sentiu, não sentiu? Aquele barulho de sinos. Você ouviu”.
Não respondi.
“Não ouviu?”, ele aumentou o tom de voz.
“Sim”, revirei os olhos, recolocando o livro sobre a mesa. “Sim, eu ouvi.”
“Ótimo.”
Encarei o teto do meu quarto, pasma.
“Ótimo?! Isso nunca chegaria a ser ótimo, Peter! Não temos uma única pista!”
“Temos, sim”, ele insistiu. “Sabemos o que está acontecendo, sabemos com quem está acontecendo... agora só precisamos saber por que ela acessou o site! Deve haver algo no álbum escolar das duas...”
Suspirei, cansada. “Segunda-feira começam minhas aulas, Peter. Não vou ter mais tempo para essas pesquisas. Acha que consegue se virar sem mim um pouco?”
“Não”.
Revirei novamente os olhos.
“Acha que pode tentar?”
Ele hesitou.
“Sim...”
“Ótimo”.
“Mas você ainda tem dois dias, Isabella. Vai conseguir alguma coisa até lá”.
“Não mesmo!”, levantei-me da cama. “Eu passei as férias todas trabalhando nesses dois casos, Peter! Cheguei a ficar feliz por não ter meus pais por perto; pela primeira vez, eu fiquei feliz por isso. Será que não mereço um único fim de semana de descanso?”
“E deixar alguém ir para o Inferno?”
Respirei pesadamente.
“Ok, está bem, tudo bem, ótimo, perfeito! Satisfeito?”
“Na verdade, não”.
“Ah, vá se...!”
“Isabella?”, eu ouvi uma voz vinda do corredor.
“Preciso desligar agora”, eu disse ao telefone, apressada. “Tchau”.
“Ah, Isabella”, minha vizinha, Sra. Jones, adentrou o quarto timidamente. “Desculpe entrar assim...”
“Não, tudo bem”, eu sorri, pondo o telefone no gancho, na minha mesa-de-cabeceira. “A senhora já é da casa, Sra. Jones. Além disso, eu já estava terminando a ligação. Mesmo.”
Ela sorriu, sentando-se à beirada da cama.
Era uma mulher alta e magra, com cabelos curtos e lisos, castanhos, que mal alcançavam os ombros. Normalmente usava uma saia comprida até o joelho e uma blusa de mangas até os cotovelos, mas naquela hora trajava um vestido florido, alegre, com mangas compridas.
Sentei-me ao seu lado.
“Eu estava pensando se... se você gostaria de tomar um chocolate quente ou algo assim. Normalmente seria um sorvete, mas, minha nossa, está tão frio...”, ela riu.
Eu assenti.
“Seria ótimo, na verdade. Eu preciso relaxar um pouco. Não tenho me divertido muito nessas férias... mas sei que nunca é tarde para isso”.
Sra. Jones concordou.
“Eu a compreendo, querida”.
Eu sabia que eu precisava relaxar. Eu não fazia isso havia semanas e minhas noites de sono apenas diminuíam na quantidade. Eu precisava descansar, e essa necessidade já se mostrava fisicamente para as pessoas ao meu redor. Peter, no entanto, não me deixava descansar. E ele estava certo. Porque eu precisava continuar e nunca perder o ritmo. Pessoas eram mandadas ao Inferno a cada dia, ininterruptamente, e seria eu boa o bastante para acabar com isso?
A vingança humana nunca pararia, mesmo que eu vivesse por centenas de anos, tentando a cada dia o que eu tentava a cada semana. Um ciclo de ódio iniciado nunca iria parar até acabar com gerações de uma família, e infelizmente se precipitar a destruir uma cidade inteira. Um ciclo de ódio inacabado poderia causar mais destruições do que uma bomba atômica, e um ciclo de ódio nunca acaba.
Era essa a razão de eu não descansar. Se essa razão valia a pena? Sim, valia muito a pena.
“Você parece tensa”, Sra. Jones comentou após pedirmos dois chocolates quentes na lanchonete a algumas quadras da minha casa. “Há algo errado?”
Eu sorri, esperando que o meu sorriso parecesse mais tranquilo e relaxado do que eu sentia estar.
“Não há nada de errado”, respondi. “Na verdade, eu estou satisfeita por a escola recomeçar logo. Confesso que senti falta dela”.
A Sra. Jones riu.
“Meu Deus, deve haver algo errado em você”, ela disse. “Isabella, eu juro que nunca ouvi qualquer adolescente da sua idade falando isso”.
“É bom ser a primeira”, sorri de volta.
Minha vizinha riu novamente.
“Agora, sobre os seus pais...”, ela disse. “Como passou as férias sem eles novamente?”
Dei de ombros.
“Já estou acostumada”, afirmei.
“Não acho que alguém da sua idade se acostumaria com isso tão facilmente”.
“Já disse que é bom ser a primeira”, dei novamente de ombros.
Ela sorriu.
“Você poderia ter viajado conosco”, comentou. “Meu marido e eu – nós não nos importamos. Você sabe disso. Ao contrário, nós ficaríamos tão felizes de tê-la conosco em nossa casa de praia na Flórida...”
“Eu imagino que sim, Sra. Jones”, eu respondi. “Mas acho que eu não me sentiria bem invadindo a sua privacidade. A sua e a do Sr. Jones”.
“Ora, não seja boba”, ela riu. “Já disse que ficaríamos felizes com você lá”.
“Bom”, respirei. “Deixa para a próxima, então.”
“Sim”, ela concordou.
Os chocolates quentes chegaram. Um líquido preto borbulhante em duas canecas brancas grandes.
“Um brinde”, a Sra. Jones ergueu sua caneca com as duas mãos. “ao recomeço de nossas rotinas”.
“É”, eu assenti. “Ao recomeço... de nossas rotinas”. Mas a minha só iria mudar. E acho que no fundo eu já sabia disso.
Assinar:
Postar comentários (Atom)

Nenhum comentário:
Postar um comentário