quarta-feira, 8 de julho de 2009

Capítulo três - Chão de vidro

“É a primeira vez que eu vejo isso...”, o velho disse, pasmo ao contemplar a cena. Vestia-se com um uniforme de jardineiro e estivera ocupado a manhã toda arrumando as plantas.
“Normalmente eles não deveriam acessar o site?”, o homem se perguntou. Tinha em média 25 anos, vestia um jaleco branco por cima da roupa com um crachá: Professor de Ciências – Ren Ichimoku.
“Era para ser assim...”, a mulher suspirou, mexendo no cabelo. Seus cabelos eram compridos e negros, seu rosto era invejado pelas outras mulheres, usava um uniforme vermelho de ginástica. “Mas eu imagino que isso não irá prejudicar a Donzela...”
“Mas é muito estranho...”, Ren comentou. “Bom, vou voltar para a minha sala. Tenho uma prova para a semana que vem, e o prazo é até amanhã”.
Os outros dois assentiram.
“Onde ela está, afinal?”, a mulher perguntou.
“A Donzela?”, Ren olhou ao redor.
“Bella?! Bella!”, os três olharam para a mesma direção. Uma garota desmaiava a poucos passos deles, junto a uma parede.
“Isabella Walker”, a mulher disse, correndo até ela. Ren e o velho a acompanharam.


“Pobre sombra envolta em escuridão. Tuas ações trazem dor e sofrimento à humanidade. Tua alma afoga-se nos teus pecados. De que forma desejas ver a morte?”

Donzela do... Inferno?
Eu senti minhas pernas perderem a força e logo meu campo de visão escureceu lentamente... a última coisa que ouvi foi a voz de Lizzy ao meu lado.



Eu estava em uma sala vazia, escura. Eu não conseguia ver as paredes, mas sentia estar presa ali. O teto não existia. Parecia ser tudo infinito. Eu estava sozinha, trancada. O ar que entrava em meus pulmões era desnecessário, como o ar que saía. Parecia que respirar não era necessário naquele lugar. Parecia que o ar sequer existia.
“Quem é você?”, uma voz feminina soou atrás de mim. Uma voz triste, aveludada, profunda... e incrivelmente magoada. Senti um arrepio ao virar-me para encarar a dona da voz. A Donzela do Inferno...
“Donzela... do Inferno?”, pronunciei as palavras sem conseguir me controlar.
“Por que está aqui?”, ela perguntou, seus olhos vermelhos mais vivos do que eu nunca havia imaginado estarem.
“Eu não sei...”, eu cambaleei para trás. “Eu apareci aqui... Você me trouxe aqui?”
Ela olhou para baixo, para o chão negro sob os nossos pés, e de repente ele se desfez, como peças negras de dominó caindo.
Mas eu flutuei sobre o chão vazio. Eu não sentia nada abaixo dos meus pés, mas eu estava ali, de frente para aquela garota... olhando-a de uma superfície invisível.
Então eu olhei novamente para baixo. Havia uma imagem abaixo de mim. Neve, caindo exatamente do ponto onde eu deveria estar pisando... caindo até uma montanha de neve lá embaixo. Como se um pedaço de vidro gigante sob os meus pés me separasse da imagem que eu via agora. Uma garota andando... cabelos louros quase brancos... lisos. Um casaco preto fofo, um gorro vermelho na cabeça... eu conhecia aquela garota. Amanda Norsten...
“Amanda Norsten?”, olhei para frente novamente, onde a Donzela estava parada, analisando minha expressão. “Por que está me mostrando ela? Ela acessou o site, mas... o que está...?”
A Donzela olhou novamente para baixo, e eu acompanhei seu olhar. Amanda tirou um boneco de palha preto do bolso e agarrou o laço atado ao pescoço dele. Ela ia selar o contrato...
“Não faça isso!”, uma garota surgiu atrás dela. Uma garota de cabelos acinzentados ondulados... compridos. Lisa Turner!
“Lisa Turner, a melhor amiga dela...”, sussurrei para mim mesma. “Era a pessoa que ela queria mandar ao Inferno... Lisa sabia...”
Virei-me para a Donzela. Ela continuava a encarar a cena.
“Então Lisa matou Amanda, mas Amanda puxou o laço?”, perguntei, a voz trêmula.
A Donzela não respondeu. Voltei-me para a cena.
“Por favor, eu não quero...”, Lisa suplicou. “Eu não quero ir! Eu prometo, eu consertarei tudo! Eu consertarei!”
Amanda hesitou, quase soltando o boneco, mas segurou-o com firmeza novamente. Outra pessoa surgiu atrás de Lisa. O namorado de Lisa, Brandon Wellston...
“Então o Brandon...”, eu não tive coragem de terminar a frase.
Eu o vi sussurrando algo no ouvido de Lisa e esta balançando a cabeça negativamente. Vi Amanda recuar alguns passos e tropeçar na neve escorregadia. Vi Brandon aproximar-se dela e segurá-la pelos braços...
“Pare!”, eu gritei, fechando os olhos com força. Minha voz ecoou na escuridão. “Eu já vi demais...”
“Duas almas foram enviadas ao Inferno ao mesmo tempo”, a Donzela disse. “E uma terceira alma será enviada em breve”.
“A alma de Brandon?”, eu perguntei. “Alguém viu o que aconteceu? Alguém além de mim?”
A Donzela não respondeu.
“Por que você faz essas coisas?”, eu perguntei. “Por que você...?”
Um ciclo de ódio nunca acaba.
Minha visão escureceu contra a minha vontade, novamente, e de repente eu já não pensava em absolutamente nada.



“Sim, eu soube que ela não estava passando bem. Não, não se preocupe, Sra. Benson. Eu cuidarei dela. Aliás, os responsáveis já foram avisados? Sim, está bem. Eu esperarei”.
Abri os olhos lentamente, sentindo-os arder enquanto a luminosidade avançava para eles. A enfermeira da escola, Srta. Harbross, estava sentada em uma escrivaninha, digitando no computador. Eu estava deitada em uma cama desconfortável da enfermaria, em uma das cabines da sala.
A enfermeira se esticou na cadeira e virou-se para trás, olhando-me imediatamente. Sorriu.
“Vejo que já está acordada...”, ela se levantou, vindo até mim. “Como se sente agora... Isabella Walker, não é?”
“Sim”, assenti fracamente. Havia borboletas em meu estômago ou algo assim? Ele parecia estar se revirando. “Eu estou bem”, olhei ao redor da sala vazia. “Eu desmaiei?”
“Pelo jeito, sim”, a Srta. Harbross puxou uma cadeira para perto da cama, sentando-se a poucos centímetros do meu rosto. “Diga-me: você fez algo de diferente, algo anormal na sua rotina, nas últimas horas? Ou talvez muito esforço físico ou deixou de dormir... você parecia cansada, Isabella”.
“Bem, eu...”, senti algo nojento subir pela garganta e engoli. O gosto não era nada bom. Fiz uma careta. “Eu não dormi muito bem nessas férias... mas cansaço nunca me afetou assim”.
“Sempre há uma primeira vez”, a enfermeira sorriu docemente. “Bom, se você já estiver em condições de levantar, já pode ir para casa. Não acho que a causa do seu desmaio tenha sido muito séria. Apenas durma cedo, coma coisas leves...”
Eu tentei me sentar. A coisa gosmenta subiu novamente a minha garganta. Fiz outra careta. A dificuldade de engolir o que quer que estivesse subindo aumentou.
A enfermeira me encarou com uma expressão preocupada.
“Sente enjôo?”, perguntou.
“Um pouco... sim”, forcei um sorriso. “Mas acho que estou bem”.
“Precisa ir ao banheiro?”, a enfermeira me ajudou a me levantar.
“Não...”, a coisa nojenta subiu. “SIM!”



“Eu a vi”, falei. “Eu a vi, Peter. A Donzela do Inferno. Ai Enma, não é?”
Ele enrijeceu à minha frente.
Estávamos sentados em uma mesa na pizzaria onde ele trabalhava. Era tarde, no mesmo dia em que eu havia desmaiado. Peter vestia seu uniforme azul e vermelho da pizzaria, assim como um boné ridículo com uma pizza sorridente em cima.
“Como ela estava vestida?”, ele perguntou, sua voz meio rouca.
“Como assim?”, encarei-o confusa. “Eu nem me importei com a roupa que ela estava vestida! Eu falei com ela, ela me mostrou...!”
“Ela usava um kimono?”, ele me interrompeu. “Ou um uniforme escolar preto?”
“Não sei!”, respondi. “Não quer saber o que ela me mostrou?”
Ele suspirou pesadamente.
“Fale”.
“Ok”, peguei ar. “Estávamos no completo breu, eu não via paredes à minha volta, nem sequer sabia se havia teto. O que havia acima de mim parecia tão infinito quanto o céu. A Donzela estava a poucos passos, olhando minha expressão, e me perguntou quem eu era e o que estava fazendo ali. Mas acho que ela me levou até lá. Então ela olhou para baixo, para o chão, e de repente era como se ele de alguma forma não existisse. Eu o vi caindo, e não sentia mais nada abaixo de mim. Eu não caía, era como se eu flutuasse em meio ao nada. Então uma cena surgiu abaixo dos nossos pés. Estava nevando e era uma parte do pátio da escola, onde Amanda foi encontrada morta. Peter”, eu me inclinei para ele. “, eu vi Amanda Norsten. Ela ia puxar o laço do boneco preto, mas então Lisa Turner, a melhor amiga dela, apareceu e implorou para que ela não puxasse o laço. Ela sabia que seria mandada ao Inferno, Peter!”
“Então Lisa matou...?”
Não! Não! Quero dizer, de uma certa forma, sim. Mas indiretamente. Ela não usou as próprias mãos...”, encostei-me no encosto da cadeira. “Brandon apareceu atrás dela e os dois ficaram cochichando entre si. Brandon também sabia do destino da namorada e não queria permitir isso, então... ele a matou. Matou Amanda Norsten”.
“Mas ela puxou o laço antes que perdesse todas as forças e...”
“... e enviou Lisa ao Inferno, como vingança também por sua morte”, assenti. “Sim, foi isso o que houve”.
“E depois Brandon amarrou o laço vermelho na ponta do dedo de Amanda”.
“É, mas isso não é importante”, suspirei. “Eu só gostaria de saber por que Amanda colocou o nome de Lisa no site, inicialmente. Ela não teria como saber que o namorado da amiga iria matá-la no futuro”.
“Não mesmo”, Peter se levantou. “Mas isso também não é importante. O que está feito, está feito. E acabou. Vamos deixar a polícia descobrir por si só quem é o assassino”.
“Mas, Peter”, eu o chamei antes que ele desse as costas.
“O quê?”, ele se virou.
“A Donzela disse outra coisa”.
Ele voltou a se sentar. “O que ela disse?”
“Um pouco antes de eu acordar, eu acho”, respondi. “Ela disse que duas almas foram enviadas ao Inferno ao mesmo tempo... e uma terceira será enviada em breve”.
“Uma terceira?...”, sua expressão se esclareceu. “A alma de Brandon”.
“Sim”, assenti. “O ciclo do ódio nunca acaba... Alguém vai colocar o nome do Brandon no site. Alguém que viu a cena, talvez”.
“Quem mais viu a cena?”, Peter se perguntou. “Estavam todos indo para as primeiras classes, naquela hora”.
“Sim, eu sei”, eu assenti. “E eu perguntei isso à Donzela, mas ela não respondeu. Foi quando eu acordei, eu acho”.
Peter mordeu os lábios, levantando-se novamente.
“Ok. Seja lá quem viu a cena, vai enviar mais cedo ou mais tarde o nome de Brandon...”, ele olhou para mim. “... e você vai saber.”




De que forma... desejas ver a morte?

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