quarta-feira, 8 de julho de 2009

Capítulo dois - Neve vermelha

A segunda-feira amanheceu tão fria quanto o último sábado. O tempo estava tão nublado que eu duvidava que a neve não fosse chegar hoje. Na verdade, chegava a ser bizarro começar a nevar no fim do verão. Uma mudança de temperaturas assustadora.
Na escola, qualquer ponto que eu olhasse, eu via alunos e funcionários vestindo casacos grossos e gorros de lã na cabeça, assim como cachecóis das mais variadas cores. O uniforme escolar já não podia ser notado entre os alunos, e eu imaginei com uma careta a reação da diretora ao contemplar aquilo.
“Bom dia!”, Lizzy se aproximou de mim, animada. Vestia um casaco forrado, um dos mais finos que eu vira naquele dia e, mesmo assim, parecia completamente confortável com a temperatura fria. Paris devia estar mesmo fria naquele ano.
“Bom dia”, eu sorri de volta.
“Está procurando alguém?”, ela notou meus olhos grudados na multidão aglomerada no pátio descoberto da escola.
“Não, imagina...”, eu me ergui nas pontas dos pés, esperando ter uma visão mais ampliada.
“Ok... quando encontrar quem está procurando, me avisa”, ela se afastou. “Ah, e se for um novo namorado, combina com ele para um encontro de casais!”
Eu revirei os olhos, ignorando os olhares atraídos a mim após a fala de Lizzy. Ela praticamente gritou aquilo...
“Eu não sou um novo namorado, sou?”, uma voz familiar soou divertida atrás de mim.
Eu fiz uma careta.
“Não, Peter...”, virei-me para encará-lo. “Você nem se encaixa na categoria ‘amigos’”.
Ele era alguns centímetros mais alto do que eu, então eu tive novamente que esticar o pescoço.
Tinha 17 anos, estava no terceiro ano do Ensino Médio, e não desgrudava de mim desde que descobriu sobre o meu querido “dom”.
Peter Sanders usou a Correspondência do Inferno há alguns meses contra o próprio pai. Dizem que ouviam gritos e gemidos femininos vindos de sua casa, e sua mãe era encontrada logo depois com ataduras e lugares roxos pelo corpo. O pai de Peter batia na mãe, e isso enfurecia o filho cada vez mais, a ponto do ódio pelo pai ser grande o suficiente para chamar a Donzela do Inferno. No entanto, ele hesitou em puxar o laço e tentou convencer a mãe a denunciar o pai para a polícia. Mas ela não quis – ela amava o marido mais do que tudo no mundo, talvez mais do que o próprio filho. Peter puxou o laço após seu pai empurrar a mãe pela escada e ela quebrar as duas pernas. O pai foi para o Inferno imediatamente, e Peter recebeu uma marca no peito, para que ele lembrasse, sempre que se olhasse no espelho, de que iria para o Inferno quando morresse, e não podia impedir isso.
Alguns dias depois, a mãe foi encontrada morta no quarto de hospital onde foi internada ao quebrar as pernas. Ela se matou com uma caneta esquecida por uma enfermeira na mesa-de-cabeceira da cama, enterrando a ponta do objeto na garganta, e deixando seu filho órfão.
Peter nunca se perdoou por isso. Ele amava o pai, e sabia que mesmo odiando-o ao mesmo tempo, ele não tinha o direito, aliás, ninguém tinha o direito de mandar outra pessoa ao Inferno. Seus pais estavam mortos por sua culpa, e ele tinha certeza de que poderia ter encontrado outra solução para aquele problema, caso estivesse mais disposto a procurar, e não pensasse em vingança como a única opção. Vingança não levava a nada. Apenas a dor e sofrimento, e uma vida sem sentido.
Peter decidiu morar sozinho, sendo já de maioridade, e, para sustentar a si mesmo, recusando ajuda dos vizinhos e da família, abandonou a escola - a mesma em que eu estudava - e arranjou um emprego de meio-período em uma pizzaria próxima à sua casa. Algum tempo depois, nós nos conhecemos em seu trabalho. Eu tentava convencer uma garota, amiga minha, a desistir da vingança com a Donzela do Inferno – ela desejava mandar sua vizinha ao Inferno, por razões que não quis me contar. No final, ela puxou o laço e, após ter selado o contrato, mudou-se de cidade com a família. Mas Peter nos atendeu em nossa conversa na pizzaria, e ouviu boa parte dela.
Depois de a garota ir embora, eu fiquei por mais algum tempo, pensando no que fazer depois daquilo. Peter se aproximou e me perguntou o que eu sabia sobre a Donzela do Inferno. Nós conversamos e ele me contou sua história. Ele soube do meu dom e parecia determinado a ajudar os outros ao seu redor, para que não tivessem o mesmo destino que seus pais e ele mesmo.
Isso foi no começo de junho, e desde então a nossa relação não passou de apenas profissional. Eu descobria quem chamava a Donzela do Inferno através de um barulho semelhante a sinos, que eu ouvia ao passar pelo “cliente” da Donzela. Nós investigávamos e tentávamos convencer a pessoa a não desfazer o laço. No entanto, até agora não conseguimos impedir sequer um cliente de desfazer o laço.
Encontrávamos as causas mais absurdas e hipócritas e não conseguíamos impedir. Em um ou dois casos eu hesitei em tentar impedir, notando que o odiado de cada um desses casos merecia ir ao Inferno. Mas Peter não aceitava isso. Ele sabe que ninguém merece ser morto por outra pessoa, mesmo que tenha acabado com milhões de vidas, e tenta mostrar isso a outras pessoas – inclusive a mim. Eu ainda não estou completamente convencida, mesmo depois de tanto tempo.
Esse dom apareceu de repente. Eu não nasci com ele, tenho certeza. Eu apenas... acordei com ele. Na verdade, foi exatamente isso: um pesadelo. No sonho, eu estava sozinha em um campo cheio de flores. Era crepúsculo. As flores eram estranhas... as pétalas eram separadas umas das outras, como se formando um tipo de coroa. Eram vermelhas, e lindas. A alguns metros de mim, uma garota estava sentada, rodeada pelas flores. Ela não sorria, mas tinha uma expressão meio triste, meio... vazia. Não pude sentir nada mais do que pena... e curiosidade. Ela tinha olhos vermelhos brilhantes e seu cabelo liso e negro comprido caía por seu corpo, sobre as flores. Ela ergueu os olhos para mim, e logo depois o barulho de sino soou em um volume insuportavelmente alto, capaz de estourar meus ouvidos. Eu caí de joelhos e olhei para frente. A garota se levantava e dava as costas para mim. Eu gritei algo a ela, mas ela não parecia escutar, ou simplesmente me ignorava. Ela desapareceu diante de meus olhos, e eu acordei.
Isso foi alguns dias antes de eu conhecer Peter, e eu não sabia absolutamente nada sobre o site Correspondência do Inferno. Para mim, era apenas um rumor – não era verdade. Mas em alguns livros eu via uma imagem, apenas um rascunho mal feito, da Donzela do Inferno – idêntica à garota que eu havia visto em meu sonho.
Eu nunca mais a havia visto, mas ainda tinha essa esperança. A esperança de falar com Ai Enma, a Donzela do Inferno.



“Pensei que não viria mais à escola”, eu comentei a Peter, as sobrancelhas arqueadas.
Ele sorriu. “Decidi ajudá-la por aqui também”, ele disse. “E não deixá-la desistir tão facilmente”.
“Bom, sinto muito”, respondi. “Perdeu o seu tempo. Não somos da mesma sala e você não tem controle sobre as minhas aulas.”
“Sei que você dá conta das duas coisas”, ele respondeu. “De afazeres escolares normais”, ele olhou por cima de mim, para os alunos que ainda se reencontravam pela primeira vez após dois meses de férias de verão. “e de impedir o envio de algumas almas ao Inferno”.
“Algumas?”, ri alto. “Peter, até agora não pegamos nenhuma”.
“Bom, estamos tentando”, ele deu de ombros. “Se ainda não deu resultado, significa apenas que precisamos nos esforçar mais. Isso não é ótimo?”
Revirei os olhos.
“Sr. Sanders!”, a coordenadora do Ensino Médio se aproximou de nós. “Sr. Sanders, ficamos felizes ao saber sobre a sua volta. E principalmente depois de sabermos que recebemos um novo assistente na biblioteca”.
“Você?”, arregalei os olhos para ele.
Ele assentiu, sem olhar para mim.
“Achei que poderia ajudar em trocar da nova oportunidade, Sra. Benson”, ele respondeu.
“Ah, mas suas notas altas já são o bastante! Realmente não precisava!”, a coordenadora olhou para mim com uma expressão de orgulho. “Sabe, Srta. Walker, a senhorita deveria seguir o exemplo do Sr. Sanders. Um aluno responsável, essencial em nossa instituição de ensino. Além de ter uma das maiores médias da nossa escola, se voluntariou por opção, sem ao menos precisar disso. Foi um prazer dar uma bolsa de estudos ao senhor”.
Ele assentiu, o sorriso agradecido.
“É um prazer ser voluntário nessa instituição de ensino”, ele respondeu.
“E deve ter sido um prazer mandar o pai ao Inferno...”, resmunguei baixinho, sem pensar. Ele me beliscou no braço e eu gemi.
“O que disse, senhorita?”, a coordenadora voltou-se a mim.
“Disse que é um prazer ser amiga dele, um aluno tão responsável e essencial para a nossa sociedade”, sorri.
Ela assentiu e se afastou.
“Deve ser um prazer ser tão irônica”, ele revirou os olhos.
“E é mesmo”, concordei, também revirando os olhos.
O sinal tocou e os alunos à nossa frente começaram a se afastar, juntar-se em grupos pequenos e adentrar a escola.
“Por que se voluntariou para ser assistente da bibliotecária?”, eu perguntei a ele, ignorando o sinal.
Ele andou até o corredor e eu o acompanhei.
“Porque eu consigo a chave da rede do computador da escola e tenho acesso total a todos os arquivos dessa escola”, ele parou. “Bem, quase total.”
Balancei a cabeça.
“E não tem nada a ver com ser puxa-saco, tem?”
“Isso não foi ironia”.
“Foi uma pergunta”.
Ele parou em frente ao seu antigo armário e o abriu.
“Não tem nada a ver”, ele respondeu. “Aliás, é melhor se apressar, Srta. Walker, ou vai acabar se atrasando para a sua primeira aula e sujando seu currículo”.
“Você é deprimente, Sanders”, revirei os olhos e dei as costas, me apressando pelo corredor.



“Já posso marcar o encontro entre casais?”, Lizzy perguntou para mim com um olhar malicioso na primeira aula.
Revirei os olhos.
“Peter Sanders”, sentei-me ao lado dela. “e eu não temos absolutamente nenhum relacionamento que não profissional”.
“Profissional deriva de namoro, não é?”, ela riu.
Revirei novamente os olhos.
“Eu decidi ajudá-lo na pizzaria”, respondi. “Pode ser bom para mim ter alguma experiência como garçonete”.
“Então vai ser essa a sua carreira?”, Lizzy fez uma careta.
“Não. Mas já é alguma coisa”.
Ela deu de ombros, indiferente, e virou-se para frente.
Lizzy não sabia sobre o que eu fazia com Peter. Ela não sabia nada sobre a Correspondência do Inferno. Aliás, eu duvidava que ela achasse que fosse real mesmo e eu não via como ela poderia testar essa lenda urbana. Ela era incapaz de sentir ódio mortal por qualquer ser no universo. Até mesmo se esse tal de David a enganasse e roubasse o seu dinheiro, acabando com sua reputação, ela não iria querer mandá-lo ao Inferno – iria querer nunca mais vê-lo, e só. Ela se satisfaz com pouca coisa, eu a conheço.
Mas eu nunca contei a ela por que eu não sabia como provar sem ela me achar uma completa anormal. E se ela espalhasse por aí? E se ela risse de mim e não me levasse mais a sério? Poderia haver qualquer reação vinda dela, disso eu não duvidava.
Eu olhei para a janela da sala de Álgebra. Começava a nevar lá fora. A neve cobriria toda a superfície limpa do pátio da escola antes do almoço. Eu imaginei as guerras de bola de neve que com certeza haveriam até o fim do dia. Talvez até o fim da semana, caso durasse tanto assim – eu duvidava.
Então eu vi algo ao longe, no final do pátio. Algo... estranho, eu poderia apostar. Algo vermelho.


Um ciclo de ódio é capaz de destruir gerações de uma família, até uma cidade inteira. Um ciclo de ódio nunca acaba.


Não houve guerra de bola de neves. Uma aluna foi encontrada morta a facadas no canto mais afastado do pátio da escola. Estava coberta de neve quando a encontraram, na hora do almoço. Eu a havia visto sangrar na aula de Álgebra, ao longe, pela janela, mas pensei não ser nada.
Era Amanda Norsten, que foi encontrada com um laço vermelho brilhante amarrado ao pescoço. Amanda Norsten era a mais nova cliente da Donzela do Inferno. Eu havia pesquisado sobre ela durante as três últimas semanas de férias, tentando achar alguma razão para ela querer mandar sua melhor amiga ao Inferno. Pelo jeito ela desfez o laço, mas morreu logo depois.

Um comentário:

  1. oi ana !
    olha ,seu texto está , tipo assim, perfeito!
    só um crítica construtiva : substitua os "reviramentos de olhos " por outras expressões , sei que eu não sou expert em textos , mas é que às vezes fica cansativo o número de revirar de olhos próximos um do outro , tá?
    Beijos beijos

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